Casamento Amor e Desejo
Durante sua história, a moral cristã esteve longe de ser mero rosário de apologias e condenações. Condenado ou não, o sexo foi muito discutido, assim como o casamento. A partir desse tema se construiu uma hermenêutica do desejo, preocupada em decifrar a natureza do pecado, em busca do caminho para a ascese da alma. É desta maneira que podemos perceber que hoje não há mais nenhuma novidade, pois a sexualidade, o casamento e o amor têm sua história. Aliás, uma história de múltiplos caminhos.
Já sabemos que no início do cristianismo a primeira literatura de cunho moral priorizou o ascetismo, cujos valores essenciais eram a virgindade e a continência, sendo que a primeira era um tema recorrente e obsessivo, eixo da moral acerca do desejo nos primeiro séculos da cristandade.A virgindade era a garantia da ascese, o retorno à origem, à imortalidade. Era a expressão corporal da alma triunfante sobre a morte, de modo que o corpo virgem era o templo da alma. Ser vigem significava estar mais próximo da divindade...Na Antiguidade tardia, época em que o casamento se tornava mais corrente e até estável, a apologia cristã da virgindade se dirigia à mulher, exortando-as a não se casarem. Os textos sobre a virgindade davam pouca atenção aos homens. A apologia orientava-se para o público feminino. Tratava-se de um discurso feito por homens para educar as mulheres.
Pode parecer algum privilégio, mas convém salientar que essa era uma visão masculina da mulher – imagem de uma época em que os pais escolhiam o marido das filhas. Por outro lado, se exortava, mesmo que timidamente, à castração do homem, afinal, Cristo era celibatário. No ano 451 a virgindade era vista como signo do verdadeiro casamento entre Deus e os homens, entre Cristo e a Igreja. O ‘outro’ casamento, humano estava muito longe da santidade.De qualquer modo, a mensagem cristã era, nos primeiros séculos, hostil ao casamento e alertava sobre os riscos e perigos da vida conjugal. Essa mensagem alertava sobre as dificuldades da convivência diária com o marido e a escravidão de (a mulher) se submeter carnalmente a ele.
Em contra partida, exaltava-se à virgindade. São Basílio, que era médico, alertava as mulheres, orientando-as a controlar todos os sentidos, vistos como portas para o desejo genital: o tato, o paladar e, sobretudo, a visão, o olhar que excita e fixa lembranças sedutoras... Tudo isso conduzia ao desejo sexual. São Paulo pregava o casamento como alternativa aos que não podiam se conter dos desejos carnais. Neste sentido, o casamento era entendido como concessão e não como mandamento. Essa concepção do matrimônio também podemos encontrar nos primeiros Padres da Igreja que, na exata medida em que exaltavam a virgindade, também deploravam o casamento, visto como um mal, pois ele impedia a ascese da alma pelo apego à carne. Ele tornava-se obstáculo à contemplação.
Desta forma, se a virgindade correspondia à verdade e à liberdade, o casamento equivalia à mentira e à escravidão. Ademais, a grande maioria dos teólogos desta época não valorizava a procriação como virtude do casamento, haja vista que a gravidez era sinônimo de dor, deformidade, sofrimento, angústia de morrer, ou ainda, de gerar uma criança morta ou doente. É bom compreender que esta visão deve-se muito às idéias de São Paulo que pregava, em seus textos, que o corpo só podia ser bom se fosse “templo da alma” e não para procriar ou sentir o prazer dos sentidos. Foi desta forma que os teólogos se viram num verdadeiro dilema: defendiam a virgindade rejeitando o casamento, mas tinham de resguardá-lo como freio ao desejo desregrado. Quem melhor se colocou diante deste dilema foi Agostinho que se colocou a favor do casamento – enquanto fonte de procriação – contra aqueles que o proibiam ou condenavam de modo absoluto. Este autor foi o primeiro a destacar a relação entre sacramento e matrimônio, afirmando que Deus havia instituído este último desde a origem do mundo. Foi com Agostinho que a monogamia estrita e a indissolubilidade formaram o corpo institucional do casamento cristão, em oposição ao divórcio – tão freqüente no mundo antigo. No período patrístico o casamento foi pensado como a fronteira entre o pecado e a virtude, o último grau da continência.Já dissemos que nos tratados sobre a virgindade idealizava-se a virgem, cuidava-se do desejo feminino e quase nada era prescrito para os homens. É claro que, para Paulo, era preferível que os homens não casassem. Mas, de modo geral, o desejo masculino não era objeto de discussão.
Durante os séculos IV e VI surgiu e difundiu-se uma literatura voltada para os homens, inspiradas nas práticas da vida solitária, empenhada em convencer os homens a lutar pela castidade. Mas os relatos sobre a vida solitária não se firmavam sobre a oposição entre castidade e casamento. Este último não era questionado e só tinha importância como lembrança do convívio com uma mulher.Mas, dos mosteiros, os relatos dos monges descreviam todo o ardor do desejo e acentuavam a dificuldade de vencê-lo. Lembranças de mulheres, sonhos eróticos, alucinações com figuras femininas, tudo isso perpassava o conjunto desses relatos. Essa multidão de imagens, associada ao feminino, lembrava ou figurava o demônio. Foi assim que a imagem da mulher foi diabolizada. A única imagem que reabilitava a mulher era, como vimos, a da virgem, da mulher sem sexo. De toda maneira, neste período, se edificou uma mensagem, não contra o casamento, mas em combate ao desejo... Nesta época, os monges sonhavam com mulheres que lhes aguçavam o desejo, mas também com a castração libertadora, e para se manter casto, recomendava-se o jejum, abstenção de alimentos que incitavam a circulação sangüínea, o vinho. Mas não bastava privar-se do sono ou da comida. Era preciso flagelar o corpo e torturá-lo ou mortificá-lo.
De modo geral, na literatura dos monges, parecia ser mais o imaginário do desejo do que o perigo do ato sexual o que atraia a atenção dos monges. Mas, nos mosteiros, havia mecanismos preventivos para frear a imaginação dos monges. O objetivo desses mecanismos era dominar a imaginação, neutralizar os sentidos e represar o desejo.
Dessa maneira, o desejo masculino e o discurso da castidade se afastavam dos tratados apologéticos da virgindade. Talvez seja por essa razão que São Crisóstomo afirmou que seria mais fácil para o homem manter-se virgem no retiro (mosteiro) do que no casamento.
No início de nossa abordagem vimos que na Patrística acentuavam-se claramente o valor da virgindade, da castidade e da continência. Por isso se recomendava a renúncia ao prazer carnal, incluindo aí o conjugal e se propunham métodos para o exercício dessa renúncia. Nesta época, o casamento foi hostilizado, enquanto instituição que permitia a manifestação do desejo.
Mas convém salientar que o casamento foi tolerado como o “mal menor”, como um espaço alternativo para a manifestação do prazer. Antes de julgarmos mal a visão cristã do casamento, é bom lembrar que nos séculos III e IV, época da Patrística, a teologia ainda não estava sistematizada e a Igreja era ainda débil, sofria perseguições e sofria muitos conflitos internos, seja através de querelas teológicas, seja por meio das disputas políticas.
Assim sendo, a fragilidade dogmática, as perseguições e a tutela imperial compõem o pano de fundo histórico da problematização moral da cristandade nos primeiros séculos. Um importante exemplo dos conflitos sofridos pela Igreja foi o gnosticismo, corrente apoiada – em menor ou maior grau – nos textos paulinos que repudiava o casamento de modo absoluto. Nesta disputa, os Padres da Igreja trataram de condenar os gnósticos e defender, de certa forma, o casamento, afinal este constituía um ato social concreto. Negá-lo radicalmente seria renunciar à obra de conversão e à própria expansão da fé cristã: equivaleria a excluir todos os casados da Igreja. Mas, e por outro lado, a defesa cristã ortodoxa do casamento apoiou-se na tradição helenística e no estoicismo, cujos filósofos eram freqüentemente citados pelos Padres da Igreja. Foi assim que o casamento estável, fidelidade e dependência conjugal, redução do prazer à cama, sentido de procriação... Foram alguns dos valores estóicos assumidos pela fé cristã. Mas é importante ressaltar que os estóicos não viam o prazer como um mal, com uma noção de pecado, que, aliás, é coisa do cristianismo!
O casamento, para esta corrente grega, era defendido como a relação mais recomendável para a saúde do corpo, equilíbrio da alma e para o bem da comunidade.